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FERNANDO
COCCHIARALE

ENTREVISTA
MARIA DO CARMO
SECCO

1981

FC — Maria do Carmo, você começou a expor em 1964. Trabalha profissionalmente, há dezessete anos. Um longo processo no qual a sua obra vem se transformando. É sobre isso que eu gostaria de falar com você agora: desse percurso, dos pontos de ruptura e de continuidade até os trabalhos de hoje. Nos anos sessenta você tematizou, como disse Frederico Morais, "A mulher se sentindo coisa, objeto, se questionando". Nessa época a linguagem de sua pintura ligava-se às questões introduzidas pela nova figuração, onde a visualidade do consumo foi apropriada criticamente pelos artistas dessa,tendência. Essa figuração sintética, pouco cuidada artesanalmente, correspondia à preocupação de muitos artistas com relação à sociedade de massas. Utilizando elementos visuais da propaganda, das histórias em quadrinho, etc. vocês falavam do novo Brasil — urbano, massificado e como sempre, pobre. Aderindo a essa tendência você estabeleceu uma ligação íntima entre o que queria dizer sobre a mulher e a linguagem pela qual exprimia suas preocupações. Quase autobiograf icamente você politizava essa situação de uso/passividade que caracteriza o comportamento padrão da grande maioria das mulheres. Sua pintura usava essa linguagem invertendo as relações de poder por ela usualmente transmitidas. Lutava com as mesmas armas (visuais) dos mass media contra a eficácia ideológica das mensagens por eles divulgadas. Por volta de 1968 seu trabalho começa a mudar: você substituiu — quase que inteiramente — a pintura pelo desenho e seu trabalho assumiu um caráter construtivo onde a figura é aludida muito sutilmente. Eu gostaria que você me situasse um pouco melhor essa transição em sua obra.
MC — Esse caráter construtivo começa a ser tratado nos desenhos, onde elementos essenciais e opostos da natureza passam ser o tema do meu trabalho. Nessa época surgem, também, os primeiros objetos que mantinham uma relação estreita com os desenhos. Há um rigor construtivo que chamei, posteriormente, de "construção narrativa". Os objetos são geométricos, monocromáticos e despojados de qualquer referência figurativa. Armados sempre em grupos de três, eles construíam a paisagem. Pirâmides, prismas, caixas embutidas são os elementos dessa nova paisagem que eu estava tratando nos desenhos e ainda na pintura.

FC — E a pintura?
MC — Por volta de 1970 ela vai sendo substituída inteiramente por essa produção de desenhos, onde começo a trabalhar os opostos e introduzo o corte.

FC — Em que consistia esse corte?
MC — O corte era na verdade o que me interessava investigar. Armava o desenho no papel e determinava um corte para apresentar o segundo lado da discussão: o seu interior. A ambivalência surgiu com a necessidade de trabalhar com os dois lados de um mesmo elemento. O verso e seu reverso, a "alma", o seu dentro. Os elementos que cortava eram duros: montanhas, pedras, muros, etc.

FC — Essa transformação em seu trabalho não se deu apenas a nível temático. Antes você tratava a condição feminina usando uma linguagem característica da nova figuração. No inicio dos anos setenta, você passa a se preocupar com as ambivalênias e com o corte. Com que linguagem você exprimia, essas questões?MC — Com uma linguagem intimista, carregada de sim-bologia. A passagem para a década de setenta se caracterizou por um certo isolamento do artista. O tempo das grandes exposições coletivas e dos movimentos de vanguarda ficou para trás. Os trabalhos pediam um outro tipo de participação do espectador.

FC — Fale-me mais sobre este trabalho, desse caráter intimista que você mencionou. . .
MC— Esse tom baixo, intimista, configura para mim, este reverso da minha obra, o momento de reflexão. Em 1973, faço uma série de desenhos intitulada "Caminho para Atafona", que ao lado das séries de muros e janelas são uma abertura para as ambivalências: fora/dentro. Nesta dialética da divisão do espaço, neste rompimento do outro lado — revela-se a casa da infância (tomando por imagem a casa de pau a pique que encontrei em Friburgo). Com o arquétipo casa fiz filmes, dentre os quais "Memória", onde ilustro um percurso em que a memória e a realidade se interligam, e montei em arquivos comuns, um trabalho de documentação poética, contendo fotos em preto e branco de exteriores e interiores de casas. Fotos mostrando como os homens constróem o seu "abrigo" — isto é, constróem de acordo com as suas necessidades e suas fantasias. O título dessa série: (filmes, arquivos e desenhos) "a Casa do Homem".

FC — De maio a novembro de 1979 você e mais alguns artistas* ocuparam o espaço da Galeria Francesa de Botafogo.
Este grupo era formado por Amélia Toledo, Anna Maria Maiolino, Maria Luiza Saddi, Maria do Carmo Secco, Mauro Kleiman, Osmar Fonseca e Rogério Luz.
Em que medida esse grupo pretendia romper com esse isolamento do artista, já mencionado por você?
MC— Partindo da necessidade de intercâmbio, alguns artistas terminaram por se reunir. Assumimos a programação da Galeria de Arte da Aliança Francesa para discutir nossa produção, o isolamento do artista, o mercado e as alternativas para mostrar um processo de trabalho com continuidade. Queriamos romper com o isolamento entre nós mesmos e travar um contato mais direto com o público, colocando nosso trabalho em discussão. Na prática, durante cada mes, um de nós coordenava e os outros participavam da proposta apresentada interferindo diretamente nos trabalhos. Depois chamávamos o público para debater.

FC — E qual foi o destino do grupo e em que sentido essa experiência contribuiu para o desenvolvimento do seu trabalho?
MC — Desativado o espaço, alguns artistas continuam mantendo até hoje, informalmente, esse tipo de vínculo. Essa experiência apontou as incríveis potencialidades de uma ação conjunta e ficou a prática de deixar o trabalho aberto para o debate.

FC — Voltando ao seu trabalho, parece-me ter havido nos últimos dez anos, um deslocamento gradual dentro dele. A preocupação pelos opostos, pelas ambivalências, é constante em todo esse processo mas vejo um deslocamento nisso tudo. Nos primeiros desenhos, em uma linguagem intimista, você enunciava: ceu/terra/dentro/fora, etc. Havia uma certa distância entre o que você queria dizer (ambivalências) ee modo pelo qual você se expressava (linguagem). Seus trabaIhos falavam dessas questões como poderiam, também, falar de outras coisas. Funcionavam quase como um narrador que pode contar diferentes histórias com a mesma linguagem. As oposições afloravam, principalmente, como temas de seus desenhos. Num trabalho de 1974, aparece a tela de arame de um muro que permite que se veja o outro lado — o cá e o lá. Essa tela se trabsforma pouco a pouco nos desenhos posteriores. Não é mais a tela de arame de um muro mas uma quadrí-cula. Elemento gráfico que permanece em seu trabalho até hoje. Lembro-me de duas fotos suas do mesmo ano. A foto colocada do lado esquerdo mostra uma mesa de trabalho meticulosamente arrumada. Régua, lápis, canetas, borracha tem seus lugares certos e definidos. Na fotografia do lado direito a situação é inversa, oposta. Nela esses instrumentos de seu trabalho estão espalhados por cima da mesa em completa desordem. Essas duas imagens me parecem muito significativas, um marco mesmo. Parecem anunciar o que virá a acontecer: as ambivalências antes tematizadas passam a ser constitutivas de seus procedimentos de trabalho incorporando-se aos resultados visuais dele. Em 1976 você passa a dividir o suporte do desenho em duas partes. É a retomada do corte, que agora intervém como elemento de construção do espaço. Tanto a quadrícula quanto o corte tem um funcionamento específico em seu trabalho recente. Ele integra as ambivalências (antes colocadas tematicamente) à própria construção da obra. O corte é o limite formal de dois espaços diferenciados — ordem/desordem, construção/desconstrução, etc. A quadrícula é o referencial gráfico dessas polaridades. Usada para organizar as imagens, ela funciona, também como elemento incapaz de domar o caos quando ele se instaura. A quadrícula é uma rede que de um lado do desenho prende a forma e, para além do corte, do outro lado aparece como uma malha incapaz de conte-la disciplinadamente. Mesmo o arquétipo da casa, desde que você começou a trabalhar com o "0 Pequeno Engenheiro", transforma-se em elemento formalizador de seu trabalho.
MC— "0 Pequeno Engenheiro" é um brinquedo onde peças de madeira permitem a construção de casas, cidades, etc. Em 1978 começo a usar esses módulos no meu desenho, carimbando-os no papel.

FC — Você outra vez confirma esse deslocamento que já observei. A casa/tema torna-se casa/módulo. A casa que constrói e desconstroi o espaço de seus desenhos. E a volta à pintura nisso tudo?
MC — Este jogo das ambivalências aparecendo outra vez, não é? Desenho/pintura, Pintura/desenho. . .

FC — Pois é, pintura e desenho, cor e grafismo, parecem ser novas ambigüidades pelas quais você começa também a se interessar e a integrar no mesmo suporte. São paisagens, até certo ponto líricas, pintadas sem muito cuidado — o corte definido por gradações cromáticas — e do outro lado o branco, o "desenho", o esquema da paisagem carimbado pelos módulos do "Pequeno Engenheiro". A cor — vermelhos e verdes — parece reforçar essa complementaridade que você vem buscando encontrar nas situações ambíguas que investiga.

Fernando Cocchiarale E/ Maria do Carmo Secco - Julho de 1981

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