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FERNANDO
COCCHIARALE

2004

Freqüentemente pensado a partir de sua diferença em relação à pintura, o desenho é definido como uma ação de criar formas ou imagens por meio da linha e não com manchas de cores e tons. Não há qualquer dúvida que, para a visualidade ocidental (em mandarim, língua hegemônica da China uma única palavra designa o que distinguimos como pintura e desenho), essa diferença não só existe, como também criou, desde o modernismo, um universo gráfico, com questões próprias. Isto é o desenho conquistou finalmente sua autonomia em relação à pintura, da qual era arcabouço, conforme a concepção clássica do Renascimento que o havia condenado a desaparecer sob as camadas de tinta. 

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A distinção é aqui essencial. Sem ela não poderíamos compreender o núcleo poético e o sentido da obra de Maria do Carmo Secco, centrada, desde seu começo na década de 1960, na criação de um campo gráfico. 

 

Há cerca de quarenta anos, a arte ocidental voltou-se outra vez para a investigação da imagem, ainda que de modo diverso daquele da arte do passado. Sintonizada com essas transformações a nova geração de artistas brasileiros da época ingressa na chamada Nova Figuração, dentro da qual o trabalho de Maria do Carmo inicialmente floresceu. 

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O texto Esquema Geral da nova Objetividade, escrito por Hélio Oiticica para o catálogo da exposição Nova Objetividade Brasileira (realizada no MAM do Rio de Janeiro em 1967), apontava para a tendência ao abandono da pintura de cavalete, em nome da criação preferencial de objetos. Parte considerável desses objetos eram de parede e tinham suas superfícies pintadas. Características que podem ajudar-nos a esclarecer o sentido da afirmação de Oiticica: certamente ele não se referia à simples substituição da atividade pictórica, por outra, a da criação de objetos, mas para a migração da pintura do quadro para o objeto, uma saída da janela renascentista para uma outra forma de pintar. 

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Essa migração, no entanto, foi marcada por outras questões: o compromisso com a realidade urbano-industrial, então já configurada com tendência a expandir-se devido à pobreza rural; a fatura baseada na cor chapada, característica do universo gráfico da imagem impressa. A Nova Objetividade consagrou não somente esses aspectos, como reuniu num único corpo (objeto) os campos pictórico (cor) e gráfico (chapadas de cor - atonalismo). 

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As obras de Maria do Carmo Secco dos anos 60 ajudaram à produção desses repertórios já históricos da arte brasileira contemporânea. Do ponto de vista icônico a artista focava seu interesse na figura humana, que ela produzia pela exploração do alto contraste entre preto e branco, sem meios tons. Pintadas sem qualquer virtuosismo e subjetividade, estas figuras integravam quadros retangulares de predominância horizontal. Muitos deles foram cortados em duas partes e, em seguida rearticulados  por dobradiças para que pudessem  ser expostos no ângulo reto, formado pelo encontro de duas paredes regulares. O plano pictórico era pois literalmente transformado, por Secco, em objeto. É também uma peculiaridade destes trabalhos o evidente desempenho gráfico das áreas negras que parecem sulcar as superfícies dos objetos. Realizados pela divisão do suporte os sulcos ou incisões eram posteriormente pintados.

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Algumas das primeiras ações gráficas dos homens foram feitas por meio de incisões na própria terra, em pedras, ossos e chifres. O desenho nasce pois do ferimento de uma superfície por um instrumento capaz de sulcá-la. Linha e traço resultam dessas escarificações ainda que feitos pelo mais macio dos lápis, no mais resistente dos papéis. 

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Maria do Carmo parece movida desde o início de seu trabalho pela compreensão profunda da natureza incisiva do desenho, da agressividade produtiva que o origina sempre. Essa compreensão essencial manifesta-se radicalmente na mostra Arquivo Dor, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Aqui, obras concebidas a partir de 2001 configuram um campo gráfico, ainda que desprovido de desenhos num sentido convencional. 

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Produzidos com meios diferenciados em seus materiais e suportes tais como fitas adesivas, papel Paraná, papel e letraset e lâminas de estilete estes trabalhos estão deliberadamente aquém de qualquer expressão subjetiva permitida pela incisão direta do lápis ou da pena sobre o papel. Como exceção dessa lógica, e assim mesmo de maneira oblíqua, estão os trabalhos Incisão e Cor (2003) que consistem de placas de papel Paraná, pintadas em monocromias amarelas ou vermelhas, e feridas por incisões de estilete criando um desenho. Os outros trabalhos são ora índices ora origem do desenho, embora não o pareçam strictu sensu. 

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Minha Carne Tua Carne (2003), por exemplo, não é apenas um título mas o próprio conceito de um dos trabalhos-chave da exposição . Sobre a transparência de dois vidros quadrados, dispostos qual losangos, traços reticentes, mas alinhados, resultam da aplicação em letraset do título do trabalho, no trabalho. A linha divide áreas igualadas pela transparência comum a todo o espaço dos suportes. Diferencia o idêntico com uma sentença que é simultaneamente grafismo, desenho. Há uma remissão evidente entre a separação das metades idênticas do vidro e aquela que o conceito parece enunciar a respeito da necessária alteridade entre o mim e o ti, tanto no afeto, quanto na sexualidade.

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O trabalho mais impactante Arquivo Dor, que dá nome à mostra, consiste numa barra de mais de 10 metros feita com centenas de pontas de lâminas de estilete fixadas na parede. Embora constitua uma ameaça explícita, já que pode cortar quem quer que se atreva a tocar a barra, esta intervenção de Secco, no entanto, não tem por intenção principal criar uma narrativa ou uma metáfora da violência crescente que afronta nosso cotidiano. Ao contrário trata-se de um depoimento sobre o papel produtivo da incisão no universo gráfico. 

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Destinado ao corte do papel, o estilete é um dos instrumentos de trabalho mais usados pelos artistas, sobretudo por aqueles que como Maria do Carmo investigam o campo do desenho. Longe de qualquer pulsão agressiva contra o corpo humano este trabalho é um emblema poético do sentido gráfico que perpassa toda a obra da artista. Ele nos revela uma compreensão do desenho que ultrapassa à potência reflexiva ou expressiva da linha, a partir da qual o desenho é freqüentemente pensado, pois ancora-se num momento que a precede sempre, e é sua causa: a incisão primordial e criadora. 

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As lâminas aqui não possuem um sentido destrutivo, mas formador. Sentido que é apontado por um trabalho complementar, Fita Cor. Trata-se de uma barra essencialmente distinta da barra de estiletes. Fixada no piso com fita adesiva, ela marca o limite entre o público e as obras. Usada em museus e instituições culturais para impedir que o público as toque, em nome da preservação e conservação das mesmas, a barra possui aqui uma lógica inversa. Ela existe para proteger o público da contundência dos estiletes e para mostrar a potência criadora destas lâminas. No final da fronteira protetora, arrematando a barra, uma flor cortada em plotter adesivado ao chão flutua entre a massa de cor atonal (vermelha e amarela) do adesivo e sua definição gráfica, feita por delicadas incisões de corte eletrônico. A imagem da flor não nos revela por si mesma  a agressividade e a violência que a produziram. Somente o conjunto dos trabalhos que compõem  Arquivo Dor pode levar-nos a percebê-las e talvez, mais profundamente, à compreensão de seu papel produtivo para a gênese de qualquer desenho.

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Fernando Cocchiarale - Novembro de 2004

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